Evaporação
- Victor Hugo Felix
- 24 de nov.
- 4 min de leitura

Eu queria me lembrar da última vez que seus olhos transbordaram ao me ver. Da última vez que fiz a alegria formar um rio nos seus lábios. Da última vez que sua alma, seu espírito, me aterraram e eu pude sentir o que é ser dois em uma só. Momentos assim foram se perdendo e eu queria tanto me lembrar da última vez que aconteceram, para prendê-los às paredes e criar o nosso museu, o meu museu em memória do sentimento que está evaporando aos poucos, partícula por partícula. Está levando você embora por inteiro, até não sobrar nada de mim, nada além dos meus cacos cortantes sobre o chão.
Minha mãe tem certeza de que a culpa é minha. Diz que eu sou chata, que ninguém consegue gostar de mim por muito tempo, que até gostam de longe, mas de perto preferem distância. Confesso que não tiro razão dela, não é de hoje que percebo esse padrão de comportamento, todo mundo me adora mas ninguém gosta de mim de fato. Sou complicada, uma avalanche seletiva de afetos, que só se derrama com quem eu quero, quando eu quero, se eu quero, o que pode ser realmente um porre para quem precisa conviver comigo a longo prazo. Sou impermanente (todas as pessoas são, na verdade, mas preciso sobrecarregar o peso dessa realidade para ter algo a que culpar) e a impermanência das coisas é o que mais perturba a existência humana. Afinal, buscamos tantas formas de nos proteger e garantir estabilidade... Nos mantemos em empregos infelizes para ter estabilidade, suportamos nossos casamentos insossos para ter estabilidade, fazemos rituais mágicos e religiosos para ter estabilidade. E eu sou imprevisível o suficiente pra ser insuportável.
Já procurei no espelho muitas outras justificativas tão autodepreciativas quanto. Talvez você tenha se desinteressado porque emagreci e minha bunda não está mais suculenta. Ou o fato de eu ter feito novas amizades no trabalho tenha revelado uma faceta da minha personalidade que é extrovertida demais para o seu paladar. Ou talvez você se frustrou por eu ter cansado de ver jogo de futebol com você aos domingos e ter me isolado no quarto para não ouvir seus berros e gemidos quando o São Paulo faz ou leva um gol. Os peitos murchos, a pele enrugada, os pêlos que crescem em regiões que gostaríamos que fossem lisas, o tempo implacável deixando marcas que varreram o seu tesão. Não pense que eu não percebo que seu pau não ficava mais tão duro quanto antes e que você se masturba vendo pornografia. Estou segura de que alguma coisa em mim se perdeu no meio do caminho como uma tarrachinha que se solta e faz o brinco cair da orelha.
Só sei quanto mais eu me viro do avesso a procura de respostas, mais perguntas encontro, porque nada está às claras, nada é simples e evidente. Precisarei de um anestesiologista e um cirurgião para me dopar e me abrir inteira e verificar se nos vãos entre as vísceras está o motivo do seu evaporar. A outra solução seria abrir você, em vez de mim. Perscrutar cada átomo, cada célula, cada sinapse a fim de identificar as mutações que fizeram você deixar de me amar. Perda de tempo. Para que tanto esforço, tanto empenho, para saber porquês que não mudarão o destino. Os fatos estão sobre a mesa, dados em bandeja de prata reluzente, onde vemos nossos reflexos incompatíveis. Você só deixou de gostar do que havia gostado – igual o suco de caju, que bebeu tanto até enjoar. Ou só amadureceu o suficiente para perceber que, na verdade, nunca gostou tanto assim de mim, mas achava que gostava porque era conveniente – tão conveniente quanto ouvir Iron Maiden, que seus amigos adoravam e você fingia interesse para se sentir pertencente; alguma coisa em mim deve ter sido conveniente pelos últimos 15 anos, e agora não é mais. Que bom para você, que se encontrou, enfim, aprendeu a reconhecer sua verdadeira essência e está abrindo caminhos para criar uma história mais autêntica. Que péssimo para mim, que não faço mais parte da sua felicidade.
Quando foi a última vez que eu parei de gostar de alguém?
Como é a sensação de olhar para um prato de comida que sempre te fez salivar e perceber que nem o cheiro mais te agrada? E o que faz o prato agora que não tem mais quem o devore com a mesma paixão, a mesma libido, o mesmo ímpeto de consumi-lo, incorporá-lo e tornar-se, com ele, um só?
Cão sem dono, faz as malas e se recolhe. Chora o tanto quanto for necessário, mas sem demora, porque a vida corre. Há contas a pagar, filhos para criar, metas a bater, sonhos para desempoeirar. Alguma coisa ainda precisa ser feita e o vazio que sua partida deixa é apenas mais um dos inúmeros vazios que a vida vai me entregar.
Para sobreviver nesse mundo é necessário uma boa dose de frieza, eliminando das coisas qualquer possível significado. Nada significa coisa alguma, nada importa, nada existe. E assim seguimos, dispostos a encontrar outros nadas nessa grande esteira de nadas, que surgem sequencialmente até o dia da morte, essa outra grande nada. E aí quem sabe, de nada em nada, encontremos o tudo.
Ide em em paz, que o Senhor te acompanhe. Está doendo, mas eu não estou morta.



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