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A arte da intimidade

  • Foto do escritor: Victor Hugo Felix
    Victor Hugo Felix
  • 11 de jun. de 2024
  • 4 min de leitura

Em filme da Chromatica Ball, Lady Gaga investe, mais uma vez, no equilíbrio entre hiperexposição e privacidade



Em 16 de junho de 2023, Lady Gaga publicou uma foto no Instagram anunciando que, sim, ela estava trabalhando na edição do filme sobre a turnê Chromatica Ball, realizada em 2022 – que, por sua vez, promovia o álbum Chromatica, lançado em 2020. A postagem foi uma forma de tranquilizar os fãs, incomodados com o sumiço e a inatividade da cantora.  Na mensagem, ela explicou que vinha experimentando viver seus processos criativos de forma privativa, trabalhando silenciosamente em projetos como as gravações para o filme “Joker: Folie à Deux”, a marca de cosméticos Haus Labs e ações filantrópicas. Ela, que um dia já foi a pessoa mais seguida do Twitter,  que figurava constantemente na mídia por conta de suas roupas e situações esdrúxulas, e que chegou a lançar uma plataforma própria para manter proximidade com os fãs, vinha gerando desconforto pelo seu afastamento dos holofotes e das redes sociais.


Quase um ano depois, ela finalmente lançou o prometido Gaga Chromatica Ball, e o registro da turnê soou como uma contradição a tal busca por privacidade. O álbum Chromatica, também apelidado de Traumatica, já havia sido marcado pela exposição de dores e conflitos muito íntimos da cantora, como a luta contra depressão e a síndrome do pânico, o uso de remédios, as perturbações mentais e o desejo de se ver livre de tantos traumas. A turnê, com seu respectivo filme, aprofundou essa temática de forma ainda mais literal.


O show começa com Gaga enclausurada, fixa em um ponto alto do palco, cantando os três maiores hits da carreira, “Bad Romance”, “Just Dance” e “Poker Face”. Logo em seguida, começa a cantar “Alice”, a música de abertura do Chromatica que fala abertamente sobre o desespero causado pelos transtornos mentais. A mensagem era bastante óbvia: o sucesso estrondoso dos primeiros anos de carreira da cantora foram também responsáveis por seus maiores traumas, então o que lhe restava era lutar para se libertar de toda a dor. No show, os atos seguintes giravam em torno dessa busca por cura, tendo a música e a dança como fios condutores de processos de autoconhecimento e liberação.


No filme da turnê, Gaga expõe angústias que às vezes parecem íntimas demais, além de abordar questões políticas delicadas, defendendo o direito ao aborto e o respeito à comunidade LGBTQ+, levantando críticas ao Estado por não proteger os mais esquecidos da sociedade. A cantora, assim, se abre diante dos fãs, coloca sua vulnerabilidade no palco e transforma as dores individuais e as preocupações sobre o coletivo em arte.


Tudo é trabalhado de forma lúdica. O cenário, inspirado na arquitetura brutalista, é acompanhado por figurinos que ora emulam latex ensanguentado, ora reluzem como ouro, ora imitam um inseto gigante. Os dançarinos ao redor, com coreografias curiosas, são ao mesmo tempo uma extensão das emoções das músicas e o estímulo visual que todo show de diva pop precisa ter. Não há, portanto, espaço para realismo, é tudo fantasia, ou uma releitura fantástica da realidade, como o Chromatica se propõe a fazer.


Imagem: Lookbook


A composição estética e conceitual da turnê, então, é muito cuidadosa para que a cantora possa se expor enquanto se esconde. Ela revela sua intimidade, mas nunca por completo, nunca de forma crua. A fantasia e a ludicidade são mais do que recursos para uma representação alegórica da realidade, são também uma distração. Essa tem sido, inclusive, uma estratégia recorrente para Lady Gaga, que ganhou notoriedade na mídia por seus trajes extravagantes e se aproveitou disso justamente para que as pessoas falassem mais sobre o que ela vestia do que sua vida pessoal.


A turnê Chromatica Ball, o álbum Chromatica e vários dos trabalhos anteriores da cantora, por mais íntimos que pareçam, por mais autobiográficos que sejam, não revelam detalhes sobre pessoas e eventos específicos, não soam como indiretas contra ninguém, não dão margem para especulações mais vigorosas – a fofoca sempre existe, claro, mas em menor grau para a Lady Gaga do que para algumas de suas colegas no mundo pop. Isso porque o foco do trabalho da cantora é desabafar sobre os sentimentos e traumas adquiridos, sem detalhar o que ou quem os causou.


Obviamente, como performer, a cantora precisa colocar sua intimidade à mostra para que o público se reconheça nela e se engaje em seus projetos. Foi dessa forma, inclusive, que ela fidelizou fãs no início da carreira, preenchendo os shows com discursos motivacionais que até mencionavam casos de bullying que sofrera na adolescência. Porém, se não atentar-se para a superexposição, ela corre o risco de perder de vez o direito a uma vida privada. Em Gaga Chromatica Ball, a cantora refina a arte da intimidade. Expõe-se o suficiente para gerar identificação no público, mas não tanto a ponto de lhe tomarem o controle da própria narrativa. Encontrar o equilíbrio entre visibilidade e reclusão, contato e afastamento, falar e fazer silêncio, é uma habilidade rara.


Ao final do filme da turnê, Lady Gaga surpreende os fãs com um curtíssimo trecho de uma nova música, que deverá estar no seu próximo álbum, sem qualquer data para ser lançada. Ao que parece, essa brincadeira de revelar e esconder seguirá ativa por muito mais tempo, o que deverá frustrar os fãs mais ávidos por acompanhar a rotina da performer com maior recorrência. A eles, desejo paciência. Porque é justamente o equilíbrio entre exposição e privacidade que preserva o desenvolver artístico de cada trabalho e a saúde mental de quem produz arte.

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