O carnaval num frasco de lágrimas
- Victor Hugo Felix
- 27 de mai.
- 17 min de leitura

Março de 2025.
Não gosto de escrever mas, no Coven em que faço parte, minha mentora insiste na importância de registrarmos nossas ideias e emoções. Ela diz que é uma tradição desde os grimórios medievais que nos ajuda a entender a fina relação entre mente, coração e magia. Sempre considerei a prática dispensável. Porém, agora estou aqui, com papel e caneta na mão, diante de um frasco de lágrimas pretas que recolhi depois de quatro dias de Carnaval. Encontro-me na mais absoluta necessidade da escrita, já que os blocos de rua fizeram uma bagunça em mim.
Contexto
Há alguns anos, fui iniciada no Coven do Sol Escarlate e comecei treinamentos em variadas práticas de magia. Meus feitiços, em geral, são ligados à cura, e mesmo sendo uma novata, tive grandes êxitos. A princípio, cuidava apenas de resfriados e dores de cabeça, mas rapidamente passei a tratar ferimentos mais graves, como estancar sangramentos e cicatrizar feridas apenas com a imposição das mãos.
Tudo estava bem e eu sentia meus poderes fluindo em minhas veias. Tornei-me uma bruxa admirável, reconhecida não apenas por um talento natural, mas por uma invejável disciplina, um esforço contínuo para que eu aprimorasse minhas habilidades. Até que, em dado momento, parei de evoluir. Feitiços para doenças mais complexas tornaram-se um desafio muito maior que as minhas forças, e ainda que eu mantivesse a mesma disciplina, os resultados continuaram enfraquecidos. A frustração, em pouco tempo, deu lugar à ansiedade. Sentia-me uma bruxa inútil, cheia de poderes sem qualquer serventia para o que realmente importava.
O que poderia estar me atrapalhando? Haveria alguma causa secreta e misteriosa, como uma maldição proferida por outra bruxa? Ou eu simplesmente era menos poderosa do que imaginava? A minha autoestima começou a ruir e levou consigo até aspectos da vida que não tinham nada a ver com magia. Passei a me sentir menos inteligente, menos bonita, menos amada… Pensamentos negativos que achava já ter superado. E quanto mais me preocupava, piores eram os resultados dos meus feitiços.
Tentei ao máximo não expor o problema às minhas colegas do Coven, pois não queria que soubessem que minhas dificuldades em magia afetaram meu psicológico. Mas não demorou muito até minha mentora, durante um treinamento, me olhar com um sorriso desconfiado, então percebi que ela já sabia de tudo. Seria melhor me abrir com ela e buscar a devida orientação.
O equilíbrio imperfeito
Cheguei à casa da bruxa numa tarde cinza, no final de janeiro. Ela morava num sobrado largo e elegante, em um bairro muito silencioso e arborizado. Uma nuvem densa cobria a cidade inteira enquanto o calor fazia nossos ossos cozinharem. Não chovia, nem fazia sol, era o equilíbrio imperfeito, o reflexo de como me sentia por dentro.
Assim que minha mentora abriu o portão, me encarou com olhos muito sábios. Com certeza já tinha uma lição para dar, um puxão de orelha ou um aconselhamento, mas como sempre, não disse nada de imediato. Apenas me cumprimentou amigavelmente e me convidou para entrar em sua casa – um lugar belíssimo com uma mobiliário que misturava itens vintage e contemporâneos, repleto de obras de arte espalhadas pelas paredes.
Mal pude admirar a decoração, pois minha mentora me guiou até sua sala de trabalho, que era uma verdadeira oficina de magia. Ali as paredes roxas eram sobrepostas por altas estantes cheias de frascos coloridos, livros e velas. Uma bancada estava coberta por vasos de plantas de diferentes tamanhos, um caldeirão fumegante, e mais livros. Em um canto havia um altar dedicado aos mais variados anjos. Naquele ambiente mágico, a bruxa me observava com atenção, como se fosse capaz de ler a minha alma. Nem se eu quisesse conseguiria dizer qualquer coisa além da verdade.
— Sinto-me frustrada, mestra… Pois minha magia estagnou. — Comecei a dizer.
— Estagnou, mesmo? Você acha?
Eu não entendi se a pergunta era retórica ou sincera. Prossegui.
— Acho, sim. Não consigo avançar em meus feitiços de cura.
— Você diz isso porque se compara às outras bruxas?
— Talvez, eu acho. — De fato, eu me inspirava muito nas minhas veteranas, o que poderia gerar certas frustrações, mas não achava que esse era o cerne do problema.
— Então pode ser a hora de aprender a não se comparar, cada bruxa tem sua própria trajetória em magia, e os avanços nunca são lineares… Todas temos nossos altos e baixos.
— Eu sei, mestra… Isso já foi muito discutido em nossos treinamentos… — Senti-me hesitante e não gostei da sensação. — Mas é que… Parece que tem algo a mais…
—Parece? — Ela quis saber. Mais uma vez, desconfiei que fosse uma pergunta retórica, mas respondi com tanta sinceridade que eu mesma me surpreendi.
— Sinto como se algo estivesse bloqueando a minha magia, impedindo que ela avançasse… O fluxo foi interrompido e eu não sei pelo que… E sem saber o que está atrapalhando, não consigo solucionar o problema.
Minha mestra sorriu.
— Não é raro que a nossa magia seja bloqueada às vezes. É claro que não estamos falando de um bloqueio genuíno, certo? O fluxo mágico não corre por um tubo que pode ser entupido e desentupido. Mas como você já deve saber, magia, coração e mente andam de mãos dadas, e o desequilíbrio de uma dessas partes pode fazer as outras caírem.
Respirei fundo. Não era aquilo que eu esperava.
— Então você acha que algum feitiço pode me ajudar a reequilibrar as coisas? — Quis saber.
—Claro que não! — Minha mentora riu. — Quero dizer, até existem algumas opções, mas nada que realmente valha a pena. Só bruxas fracas lançam mão desse tipo de feitiço, e não acredito que seja o seu caso.
— O que devo fazer, então?
A minha voz quase não saiu. Um nó se formou no fundo da garganta e o meu coração acelerou de repente. Um monstro adormecido despertou dentro de mim e tive que afastá-lo depressa, antes que eu desabasse a chorar diante da minha mentora.
Sábia como sempre, ela me pegou pela mão e me levou até a janela. Mostrou-me a imunda e bela cidade de São Paulo, onde as nuvens cinzas ressaltavam a sujeira do concreto das construções.
— Ainda não começou a chover, mas irá em breve. E depois, o sol vai arder como nunca. Serão dias de calor tão intenso que as pessoas terão medo de sair às ruas. Porém, elas vão sair do mesmo jeito, porque será Carnaval.
As palavras dela tinham um encanto que me envolvia, enquanto o meu coração pulsava, perdido dentro do peito, pulando em todas as direções.
— Em certo sentido, o Carnaval é a época do ano em que a magia toma conta das ruas. Isso, é claro, se você considerar como magia tudo aquilo que causa transformações em nós mesmas, nas pessoas ao redor, e no mundo como um todo. E durante o Carnaval, essa magia assume os mais variados matizes. Não é boa, nem má, nem luz, nem trevas. É o caos em toda sua beleza dominando as cidades e bagunçando a vida de quem se permite vivenciá-lo.
Eu ouvia tudo com atenção. Não sabia onde ela queria chegar.
— Pode ser uma boa ideia que você vivencie esse caos. Entregue-se à magia do Carnaval e veja o que isso pode te trazer. Vá de coração limpo, preparada para o melhor e o pior. Até lá, observe atentamente as fases da Lua, e reconheça que mesmo a luz deste astro desaparece em determinados momentos, para depois brilhar novamente.
O coração quase abriu um buraco no peito e saltou para fora, desesperado. O que eu faria no Carnaval? Como as festas de rua me ajudariam nas práticas de magia? Embora fosse inexperiente no assunto, sabia muito bem sobre as tradições do feriado: a alegria contagiante que quase sempre vinha acompanhada de excesso de hedonismo; a música, a dança, as fantasias, a cultura; a bebedeira, a ressaca, os furtos, os abusos. Sabia o suficiente para desejar tais experiências e, ao mesmo tempo, temê-las.
O monstro dentro de mim deu sinais de vida. Eu precisei contê-lo com veemência.
— O que eu faço depois do Carnaval? — Perguntei com os olhos cheios de insegurança.
— Você irá descobrir.
O rosto da minha mentora permaneceu enigmático. Sua sabedoria exalava como um perfume cítrico e exótico, difícil de decifrar, mas indiscutivelmente fascinante.
Tempestade
A chuva torrencial entre o fim de janeiro e o início de fevereiro fez as nuvens cinzas desaparecerem, como a líder do meu Coven havia dito. Depois disso, seguiu-se um período de seca intensa, em que o céu permanecia vivamente azul e as folhas das árvores brilhavam sob os raios do sol. O Carnaval se aproximava e isso me tirava o sono. Para lidar com o medo do imprevisível, meditava sobre as fases da lua, como minha mentora havia orientado, para me lembrar de que, mesmo nas piores situações, eu poderia me recuperar e me tornar uma pessoa nova. Se não fosse por isso, teria desistido do Carnaval – o que agora sei que teria sido mais seguro, mas muito menos inteligente.
Primeiro bloco
Com a respiração ofegante e o coração acelerado, vendo no espelho uma mulher que ainda não atingiu todo seu potencial de beleza, vesti a roupa mais carnavalesca que tinha no armário – uma regata branca e um shorts com lurex dourado – e fui às ruas no sábado de Carnaval. Tomei o metrô e fui para a concentração, onde o trio elétrico esperava os foliões. No trajeto, senti-me intimidada pelas pessoas. Elas vestiam roupas que ou eram muito curtas, ou eram fantasias elaboradas demais para aquele clima tropical. Conversavam entre si, fofocavam, riam, dançavam mesmo sem música. E eu ali, sozinha, me sentindo obrigada a partilhar da mesma empolgação que todos os outros, mesmo sem ter repertório para isso.
Não sou uma bruxa clarividente, mas algumas pessoas são fáceis de serem lidas, então parei para observar que emoções traziam. Percebi que uma garota bem próxima de mim, por exemplo, vestida com fantasia de palhaço na saída do metrô, xingava os amigos mentalmente por estarem todos atrasados. Um pouco mais distante, um rapaz ria alto enquanto dançava com outro homem, mas era uma animação falsa, para tentar impressionar outro rapaz ao lado, que conversava com uma amiga sem lhe dar atenção. Em outro local, uma mulher um pouco mais velha sorria de empolgação, pois era a primeira vez que voltava para o Carnaval depois de ter filhos.
Era possível sentir a magia no ar. Uma magia densa, que escorria pelos trilhos do metrô e subia as escadas, passava pelas ruas e praças, e se espalhava pela cidade feito névoa. Uma névoa que, ao contrário de esconder os caminhos, revelava novos, mais imprevisíveis. Seria essa a magia que traria a minha cura? Respirei fundo e segui o movimento.
A música animada, brasileiríssima, era o que despertava os ânimos de todos. Até as cores das fantasias e do glitter colado nos corpos suados pareciam mais brilhantes do que o normal. As pessoas cantavam, dançavam, sorriam, e só eram interrompidas por vendedores ambulantes que gritavam “Ó o pesado”, pedindo passagem. Era um tipo muito específico de caos que, se um dia fosse organizado, acabaria se descaracterizando.
O bloco andou pelas ruas de asfalto quente de São Paulo, sob o sol mais brilhante que eu já havia visto na cidade, como se ele tivesse esperado o Carnaval para surgir com toda sua majestade. Mais música, mais dança, mais suor. Corpos seminus, cheiro de bebida doce e protetor solar. Até eu, que comecei o bloco tímida e desajustada, me deixei contagiar. É difícil dançar e andar atrás do trio ao mesmo tempo, mas fiz um esforço e coloquei minha desenvoltura pra jogo. Algumas meninas próximas dançaram comigo, elogiaram o meu shortinho e me ofereceram glitter para passar no corpo.
O álcool que eu ingeria nem fazia efeito, parecia evaporar com o calor. O suor escorria pelas minhas costas e invejei uma mulher que passou por mim com apenas um tapa-sexo nos mamilos e a parte debaixo do biquíni. Um ambulante mais discreto chegou no pé do meu ouvido e ofereceu baseado embolado. Um casal discutiu no meio do bloco porque um havia perdido a pochete do outro. Levei uma cotovelada de um menino que se empolgou na dança e não percebeu que a rua estava lotada demais para fazer movimentos expansivos.
Então uma garota se aproximou de mim. Não lembro da aparência dela, só dos cabelos grudados no pescoço por conta do suor. Perguntou de onde eu era, e respondi, um pouco tímida, que de São Paulo. Ela sorriu para mim, com um olhar de quem não tem mais tempo a perder. Não resisti. Nos beijamos ali, sem medo de nada, sentindo nossas peles colarem uma na outra. Nos soltamos e eu mal conseguia respirar de tanta excitação – há muito tempo não fazia algo tão prazeroso. Retomamos o beijo num ritmo muito mais envolvente, a língua dela tomando posse da minha, e suas mãos macias apertando minha cintura e meu pescoço. Ela me deu um selinho e saiu para junto dos amigos. E eu também segui meu caminho, pronta para desbravar novos corpos, novas bocas.
Segundo e terceiro bloco
No dia seguinte, estava excitada e assustada. A experiência do primeiro bloco havia sido positiva, mas temia as surpresas que os dias seguintes me reservavam. Ainda assim, quis viver o Carnaval com intensidade, pronta especialmente para a luxúria das ruas. Tentei realizar um feitiço de sedução, para que eu parecesse mais atraente aos olhos de quem me visse. Peguei uma saia antiga e a cortei para torná-la ainda mais justa. A insegurança não iria me impedir de experienciar o máximo de emoções possível.
Para minha decepção, o feitiço de sedução não tem efeito quando estamos minimamente inseguras, e ao contrário de seduzir, acabei passando despercebida. Por mais que eu me atraísse pelas pessoas ao redor, nenhuma parecia se interessar por mim. E quanto mais eu tentava ser notada, mais parecia invisível. Nem quando pisavam no meu pé me pediam desculpas.
Voltei para casa chateada e a minha preocupação pelos dias que se seguiriam aumentou. Acordei na segunda-feira já bastante cansada, física e emocionalmente, mas joguei um pouco de glitter, que havia comprado de um ambulante, no corpo e fui para o terceiro bloco.
Para evitar uma nova decepção, fiz um feitiço de invisibilidade sobre mim mesma, um tipo de ilusão para que dessa vez, sim, eu passasse despercebida. Quem me visse, não me notaria, então não sofreria por rejeições. E mais uma vez o meu feitiço não funcionou. Jurava que estava invisível, mas um rapaz com uma tiara da Minnie me olhou com tanta vontade que eu me desconcertei. É claro que nos beijamos, e foi ótimo.
Ao meu redor, as pessoas bebiam, dançavam, estalavam leques imensos, fumavam e, às vezes, usavam drogas recreativas. Quando todos cantavam em uníssono algum clássico do Carnaval brasileiro, sentia o meu corpo se encher com a mais bela e pura magia – um tipo de encantamento solar que me fazia dançar sem nem saber a coreografia.
Outros beijos vieram. Outros corpos e outros rostos passaram diante de mim. Ao meu redor, o mais saboroso caos. Um grupo de rapazes vestidos de fadas parecia preocupado com os amigos que haviam se perdido na multidão. Um homem musculoso dançava com vigor e, sem saber, inspirava as pessoas ao redor a seguirem seus passos. Uma menina se dividia entre curtir o bloco e checar a cada minuto se seu celular continuava na bolsa. Um casal de meninos se beijava e era evidente que ambos estavam eretos.
Último bloco
Na terça-feira de Carnaval, o dia mais simbólico da festividade, acordei angustiada. Até ali, o feriado havia trazido seus altos e baixos, mas algo me dizia que o melhor ou o pior ainda estava por vir. Meu maior temor era não saber reagir ao que o futuro me reservava. No entanto, obstinada como sempre fui, coloquei um pouco de glitter no corpo, um lenço vermelho na cabeça, e parti para meu último bloco.
Tentei me entregar para o momento, viver o presente e não me preocupar com absolutamente nada. Não importava se eu estava seduzindo alguém ou passando despercebida; se me sentia à vontade ou se parecia deslocada; se a magia do momento acabaria com o bloqueio dos meus poderes ou se continuaria na estaca zero. Concentrei-me em seguir o fluxo do bloco e o ritmo da música.
Não pude deixar de notar, entre os corpos quentes e as bebidas geladas, sob o sol escaldante e a sombra dos prédios ao redor, uma energia densa fluindo por todos os lados. As pessoas talvez não percebessem porque estavam inebriadas demais para enxergar a complexidade de tudo, mas a magia do Carnaval, de verdade, está longe do estereótipo sorridente e colorido que em geral reconhecem. É uma magia bruta, uma mistura de ouro e chumbo, anterior a qualquer refinamento, que pode se desdobrar em alegrias e tristezas com a mesma intensidade.
Todos os excessos permitidos durante o Carnaval são um risco, embora sejam permitidos justamente porque precisamos corrê-los de vez em quando, para nos sentirmos vivos. E a euforia, muitas vezes, é máscara para uma dor que sufoca as pessoas ao longo do ano inteiro, e que é liberada por meio de um sorriso quimicamente alterado. O Carnaval é um perigo para a saúde e a segurança, e todos que vão às ruas estão cientes disso, sabem o que estão fazendo e não pretendem recuar. Porque esse é o preço que pagam para sentir o sangue nas veias e ver as manifestações da arte e da cultura do povo – a música, a dança, as piadas, as tradições, até o jeito de se vestir, tudo aquilo que é popular e genuinamente brasileiro –, brilhando com todo seu vigor. Os sorrisos, mesmo quando maquiados pelo álcool, ainda são sorrisos. E as boas lembranças do Carnaval, quando sobrevivem à ressaca, serão sempre boas lembranças.
A magia do Carnaval é a pulsão de vida e a pulsão de morte andando de mãos dadas, o que não é uma contradição. As ruas tumultuadas permitem os mais imprevisíveis acontecimentos, de paixões a furtos, brigas, encontros, amizades, coreografia, tesão, carinho, mal-estar, tudo. Senti um pouco disso na minha própria pele e não foi muito agradável.
Estava dançando, distraída, quando olhei para trás e a vi de longe. Eu reconheceria aquele rosto nem que estivesse a quilômetros de distância. Mas tão logo a vi, desviei o olhar, para que ela não me notasse. No breve segundo em que a avistei, percebi que seu cabelo estava preso numa faixa amarela, e isso ficou gravado na minha cabeça. O coração acelerou e meu corpo parou de dançar.
“Não é possível que vou encontrá-la bem aqui”, desabafei para mim mesma. O monstro do meu peito despertou e rugiu numa voracidade atroz.
Segui andando pelo bloco aos tropeços, tentando dançar e curtir a música, perdida entre me permitir conhecer novas pessoas e lamentar aquele reencontro infeliz. Ela estava lá, e talvez até tivesse me visto de costas, mas não veio falar comigo. Eu estava sozinha; ela, provavelmente, rodeada de amigas. Senti-me diminuída, frágil, rejeitada. A faixa amarela, que fazia um contraponto ao meu lenço vermelho, não saía da minha mente. Que inferno…
Não consegui mais ser a mesma. Ainda que beijasse outras pessoas, pensava sempre naquela mulher. “Será que ela está vendo eu me agarrar com essa desconhecida?”, indagava para mim mesma, sentindo o gosto de língua e Skol Beats na boca. “Será que ela está me vendo dançar? Será que ela ainda vai vir falar comigo? Será que sente minha falta?”.
E nas idas e vindas do bloco, eu a vi de novo. Dessa vez, beijando uma garota que, por uma ironia nada refinada do destino, usava um chapéu horroroso de bruxa. Passei bem próximo dela, quase nos esbarramos, e não interagimos. Até hoje não sei se ela me viu ou não, mas eu a vi com clareza, e isso foi suficiente pra me jogar no buraco.
Há muito tempo atrás, eu amei essa mulher. E acho que ela me amou também, não tenho certeza. Porém, ela foi embora tão de repente, sem uma explicação, sem uma conversa para que encontrássemos, juntas, uma maneira de fazer a relação durar. O sonho acabou como se arrancassem cera quente da perna – de forma rápida e dolorida. A minha única solução foi segurar o grito e me anestesiar. Parei de sentir qualquer coisa, fosse tristeza ou saudade, para não enlouquecer. Abafei o monstro, larguei-o em sono profundo, sem perceber que no meu peito ele continuou a ganhar forças.
Então, reencontrei a mulher no Carnaval, e tudo que eu tentava esquecer voltou à memória. Toda a dor, todo o lamento, toda a culpa… Em pleno bloco, eu me vi chorando de novo por tudo que eu havia me esforçado para não sentir.
Enxuguei as lágrimas torcendo para que ninguém tivesse percebido minha fragilidade. O bloco ainda seguiria por algumas horas, e eu precisava dançar, beber e viver o momento. Foi o que fiz, meio desorientada, bastante cansada e indecisa. Conheci novos corpos, novas bocas, fiz amizades que duraram trinta segundos. E quando, enfim, acabou, voltei para casa sozinha, sentindo pesar no peito o oceano de experiências boas e ruins concentradas numa única festividade.
Ainda no metrô as lágrimas desabaram mais uma vez. Mais tarde, em casa, chorei de novo. E chorei por bastante tempo, sem conseguir compreender exatamente o que fazia o pranto ser tão intenso. Chorei de vergonha, por não ter conseguido curtir o Carnaval como qualquer pessoa normal faria. Chorei de tristeza, por me lembrar da forma abrupta como havia sido rejeitada pela mulher que eu amava. Chorei de culpa, por ainda não ter conseguido aproveitar nada daquela experiência para recuperar meus poderes. Chorei de medo, por não saber como sairia daquela confusão emocional.
Tive, então, uma ideia. Fui à minha sala de trabalho – uma versão muito mais humilde e simplista da sala da minha mentora – e peguei um pequeno frasco vazio, que geralmente uso para recolher o orvalho das minhas plantas do jardim. Levei-o ao meu rosto e guardei um pouco das minhas lágrimas. Enchi quase um terço do frasco, e quando prestei atenção, vi que havia um floco de glitter junto ao líquido transparente. Coloquei o frasco de lágrimas na minha estante, ao lado de livros e de elixires, e fui tomar banho.
Quando voltei à estante, entrei em desespero ao perceber que o frasco havia mudado de cor. O líquido transparente tornara-se preto, completamente escuro, como se estivesse sujo ou poluído. O apavoro quase me fez desmaiar. Seria alguma doença ou maldição? Que tipo de feitiço maligno faria minhas lágrimas escurecerem daquele jeito?
Assustada, pensei em entrar em contato com a líder do Coven, mas minha intuição me pediu calma. Ainda que estivesse agitada, zanzando de um lado para o outro em casa, contive a exasperação e respirei. Talvez aquele frasco de lágrimas pretas fosse a chave para entender o que havia de errado comigo.
Coloquei o frasco sobre uma almofada no chão e me sentei no tapete, na postura de lótus. Precisava urgentemente meditar. Tentei tranquilizar os pensamentos, mas o barulho na minha mente era mais alto, enquanto o monstro no meu peito rugia com força. Mudei a estratégia. Em vez de silenciar a mente, procurei ouvi-la. Fui em busca de onde vinha o barulho mais alto. E lá, a encontrei. A mulher que eu amei, com faixa amarela na cabeça, beijando a menina com chapéu de bruxa. Toda a dor daquela paixão maldita cortou meu peito por dentro. O amor que esqueci no coração, porque não tinha mais a quem endereçá-lo, reacendeu e causou um incêndio. Eu tinha certeza que sairia machucada. Mas precisava ouvir o que meus sentimentos diziam.
Abri os olhos, vi as lágrimas pretas no frasco, sem ideia do que fazer. Guardei o recipiente de volta na estante e fui dormir. Deixei para tomar decisões no dia seguinte. Na cama, acendi uma vela aromática de canela, o que foi uma péssima ideia. Sentia meu corpo e minha mente agitados, como se ainda estivesse no bloco de Carnaval, revivendo cada segundo num misto de horror e deleite. Havia muito para meu cérebro processar.
Alquimia
Os dias seguintes se arrastaram. Acordava sem disposição e as minhas práticas de magia foram as piores em anos. Tentava realizar feitiços de cura em plantas danificadas, depois chorava no banheiro ao perceber que estava regredindo em vez de evoluir. E enquanto as lembranças dos quatro dias de Carnaval atropelavam meus pensamentos, eu buscava entender o que todas aquelas experiências tinham a ver com as lágrimas escuras que verti.
Procurei em livros antigos e materiais de estudos, consultei os astros, fiz magia divinatória, e não tive bons resultados. Esgotei todas as possibilidades até que, enfim, desisti. Larguei o lamento e a autopiedade e retomei minha rotina de sempre. Fiz orações pela manhã, meditação ao entardecer, e busquei manter uma dieta com alimentos mais densos, para que eu pudesse me aterrar um pouco e sair daquele mar de divagações que me deixavam tão aérea.
Então, hoje à tarde, quarta-feira, dia de Mercúrio, enquanto eu organizava a minha sala de trabalho, reencontrei um livro que havia perdido há muito tempo. Era uma introdução à alquimia, recheado de ilustrações belíssimas, e uma delas me chamou a atenção.
Três recipientes de laboratório – balões de fundo redondo, mais especificamente –, dispostos um ao lado do outro. O primeiro, preto. O segundo, branco. O terceiro, vermelho. Dentro do primeiro recipiente, dois corpos abraçados em meio à escuridão. No segundo, uma rainha envolta pela brancura. No terceiro, um rei emerge de um líquido escarlate. Abaixo, as legendas: Nigredo, Albedo e Rubedo, respectivamente.
Meus olhos se voltaram para o primeiro recipiente. Dois corpos abraçados em meio à escuridão. Ou melhor, embolados, amassados, um se confundindo com o outro. O balão de fundo redondo era preto como piche, escuro como a noite. Igual as lágrimas que saíram dos meus olhos depois do Carnaval.
Agora eu olho para o frasco e entendo… Era tão óbvio, não era? As lágrimas pretas são o caos das minhas emoções, que precisa ser purificado. Medo, remorso, culpa, e também paixão, autoconfiança, saudade e amor. Muito amor. Um amor interrompido, abafado, mas tão potente que, ao ser silenciado, bloqueou a minha magia. Se eu quiser retomar a força dos meus poderes, sair da escuridão, chegar à luz e desabrochar como o rei vermelho, precisarei encarar a escuridão das minhas lágrimas, incluindo o amor vibrante que carrego comigo como um corpo sem vida.
Confesso, estou desesperada. Meu pior pesadelo sempre foi ter que lidar com aquele amor que só me faz lamentar o eterno luto do que não foi vivido. Tenho medo de me queimar de novo nessa paixão e não conseguir me recuperar. Me conheço bem o suficiente para saber que, sem o devido cuidado, posso me afogar nos meus próprios sentimentos, e ninguém estará ao meu lado para prestar socorro.
Ao mesmo tempo, sei que se eu quiser ser uma bruxa forte, precisarei enfrentar os monstros que moram em mim primeiro. Silenciá-los não é suficiente. Matá-los é impossível. É preciso dominá-los, com força, coragem e sabedoria.
O final dessa história eu ainda não sei qual vai ser. Só posso afirmar que a amálgama de bem e mal contida nas lágrimas pretas é só o começo de um longo processo de depuração, e o meu trabalho agora é fazer com que luz e trevas ocupem, cada uma, o seu lugar. O frasco continua aqui na estante, as lágrimas seguem com a cor da noite, e a purificação é uma jornada longa. Eu mesma tenho que descobrir os métodos mais assertivos.
Enquanto escrevo, a lua cheia domina o céu, mesmo que eu não possa vê-la por conta das nuvens. Ela brilha em algum lugar, com todo seu vigor, antes de se recolher e passar um período longe de nossas vistas. Depois, ela vai voltar. Em pouco tempo estaremos banhados por sua luz prateada novamente.
Revisão: Verônica Garcia
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